Onde a resistência se torna caminho
- christiana araripe
- 3 de ago.
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Atualizado: 4 de set.
Em um país onde espiritualidade, ancestralidade e resistência se entrelaçam, Paulo José dos Reis, o Paulo de Ogum é mais do que um nome: é um chamado. Filho de uma família católica de Duque de Caxias, ele trilhou um caminho que o levou de volta ao passado, às raízes e ao Quilombo de Bongaba, território ancestral que hoje resiste, floresce e inspira.
Tudo começou com o falecimento da avó paterna. Com a partida dela, vieram os primeiros sinais:
"Meus irmãos começaram a apresentar problemas espirituais. Foi quando a espiritualidade nos chamou. Não dava mais para ignorar."

Parceria com o Museu Nacional
Paulo ouviu o chamado. E assim o seguiu.
"Ogum revelou, por meio do oráculo, que era preciso resgatar minhas raízes. A missão que Deus me destinou começaria ali: no Quilombo de Bongaba, que me foi apresentado em sonho durante minha cerimônia de sete anos de iniciação, aos 18 anos."
Esse Quilombo, datado de 1696, carrega séculos de histórias. Durante muito tempo, foi deixado para trás por conta de doenças como a tuberculose, que dizimaram famílias inteiras. A de Paulo foi uma delas, migrou para Caxias nos anos 60, onde ele nasceu, pelas mãos de uma parteira. Mas a espiritualidade guardava um destino para ele: continuar o trabalho que sua avó deixou em aberto.
“Era como se o tempo tivesse pausado e esperasse o meu retorno para reiniciar o ciclo.”

Artesanato é feito pelos próprios moradores do quilombo
O despertar do território
Nos anos 1980, Paulo foi orientado por Osayin, orixá das folhas e da cura, a reflorestar o território ancestral. Começaram a replantar, a observar, a se reconectar com a terra.
“Encontramos as essências que resistiram: bambus, dendezeiros, goiabeiras, araçá, capueraba, arnica, cacau, genipapo, jaqueiras. Era a natureza nos lembrando de que qualquer tempo é tempo para começar a amar.”
Nascia então o projeto "Qualquer Tempo é Tempo para Começar a Amar a Natureza", com o propósito de regenerar a Mata Atlântica, palco do primeiro desmatamento do Brasil.
E ali, junto com as folhas, brotavam histórias. A ferrovia. Os objetos da época da escravidão. A memória dos que ali chegaram acorrentados, mas deixaram rastros de liberdade. Paulo conta que seu avô foi ferroviário e ajudou na construção da primeira Estrada de Ferro do Brasil. E ali, dentro do Quilombo, havia uma estação. Para chegar ao território, é preciso atravessar a lendária Guia de Pacobaíba, trilho da história nacional.
Espiritualidade, cultura e pertencimento
Em 1994, a Casa foi aberta com uma proposta sustentável, contra-colonial e afrocentrada. Durante dez anos, uma Mostra Cultural desmistificou a Cultura Afro e o Candomblé.
“O compromisso era resgatar os valores civilizatórios que foram apagados pela narrativa dominante”, explica Paulo.
Esse trabalho lhe rendeu reconhecimento como Autoridade Civilizatória, título concedido por iniciativa do teólogo Jairo de Jesus. Em 2018, o território foi certificado pela Fundação Palmares e reconhecido oficialmente pela ACQUILERJ, Associação dos Quilombos do Estado do Rio de Janeiro.
Mas para Paulo, o maior reconhecimento é outro:
“Ogum disse que no território existiam talentos adormecidos que precisavam ser despertados. Era isso que eu precisava fazer.”


Foi assim que nasceram projetos de resgate cultural e empoderamento comunitário. Esteiras feitas com taboa, como as de Vovó Alzira, cerâmicas de Tito, gastronomia ancestral, criação de galinhas, moda, beleza e arte. O território virou celeiro de talentos e berço de autoestima.
O Ilê Asé Ogun Alakoro, sede espiritual do Quilombo, mantém vivas as rezas, as folhas e os orixás. Ali são desenvolvidos núcleos de acolhimento:
NAF – Núcleo de Acolhimento à Família, regido por Iemanjá, atua com campanhas de vacinação e proteção social;
NAM – Núcleo de Acolhimento à Mulher, regido por Oxum, fomenta o empreendedorismo feminino com foco na gastronomia, moda, artesanato e beleza.

Gilsane Muniz, Miss Plus Size Nacional, vestindo GboGbo Aso, gripe criada no Quilombo Bongaba
Escolher ser e estar
O legado que Paulo de Ogum constrói com a comunidade de Bongaba vai além da ancestralidade, ele toca o futuro.
“É sobre romper a blindagem cognitiva que um dia determinou nossos passos e espaços. Agora, é hora de nos apropriar da liberdade de ser quem somos, de estar onde desejamos.”

Paulo José dos Reis, liderança do Quilombo Quilombá
O Quilombo de Bongaba é solo fértil de história, espiritualidade, resiliência e amor à terra. Onde o tempo não apaga, mas ensina. Onde a natureza fala e o povo escuta. Onde as raízes não prendem, sustentam.
Três décadas de axé, memória e resistência
Em setembro, um marco importante será celebrado: os 31 anos de fundação do Terreiro, espaço sagrado que pulsa vida, acolhimento e espiritualidade e que, há mais de três décadas, também se tornou o coração vivo do Quilombo fundado em 1696.
Muito mais que uma casa de axé, o Terreiro é ponto de força, de memória e de continuidade ancestral. É ali que a história se mantém viva, nos cantos, nas folhas, nos gestos e nas lutas diárias. Ao longo desses 31 anos, muitas histórias foram escritas e muitas vidas transformadas.
"A principal marca desses anos é poder ser um instrumento de Deus para promover o bem-estar de todas as pessoas que aqui são acolhidas. Esse sempre foi o nosso propósito: acolher, cuidar, orientar e manter vivo o legado dos nossos ancestrais." afirma Paulo, liderança do Terreiro.
Embora o Quilombo tenha raízes que remontam a 1696, o reconhecimento legal desse território como espaço de resistência e identidade é relativamente recente. Em 2016, veio o primeiro reconhecimento como território quilombola. E, em 2018, a Fundação Palmares oficializou a certificação.
"O reconhecimento é importante, mas a história já era viva muito antes disso. Nosso povo sempre soube quem é e de onde veio", lembra Paulo.
A celebração de setembro, portanto, é mais do que uma festa. É um ato de afirmação. Um momento para honrar o passado, celebrar o presente e reafirmar o compromisso com um futuro de liberdade, espiritualidade, dignidade e axé.





Uma linda história de resgate ancestral e construção de uma nova forma de sociabilidade. O Quilombo representa essa possibilidade, de se construir um mundo melhor para todos